Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde,
ele pôs-se a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar‑se.
Mondrian, também, da mão direita
andava desgostado;
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil.
Assim, não a trocou de braço:
queria-a mais honesta
e por isso enxertou
outras mais sábias dentro dela.
Fez-se enxertar réguas, esquadros
e outros utensílios
para obrigar a mão
a abandonar todo improviso.
Assim foi que ele, à mão direita,
impôs tal disciplina:
fazer o que sabia
como se o aprendesse ainda.
[...]
Juan Gris levava uma luneta
por debaixo do ôlho:
uma lente de alcance
que usava porém do lado outro.
As lentes foram construídas
para aproximar as coisas,
mas a dêle as recuava
à altura de um avião que vôa.
Na lente avião, sobrevoava
o atelier, a mesa,
organizando as frutas
irreconciliáveis na fruteira.
Da lente avião é que podia
pintar sua natureza:
com o azul da distância
que a faz mais simples e coesa.
Jean Dubuffet, se usa luneta
é do lado correto;
mas não com o fim vulgar
com que se utiliza o aparêlho.
Não intenta aproximar o longe
mas o que está próximo,
fazendo com a luneta,
o que se faz com o microscópio.
E quando aproximou o próximo
até tacto fazê-lo,
faz dela estetoscópio
e apalpa tudo com o olhar dedo.
Com essa luneta feita dedo
procede à auscultação
das peles mais inertes:
que depois pinta em ebulição.
João Cabral de Melo Neto, do livro Serial (1959-1961)
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