quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Joan Miró


uma centelha

Esta é a cor dos meus sonhos
Ceci est la couleur de mes rêves

mulher, estrela, flor, caracol
femme, étoile, fleur, escargot

um pássaro persegue uma abelha e a beija
"Un Oiseau poursuit une abeille et la baisse". Paris, January–mid-February 1927
Oil, aqueous medium, and feathers on glue-sized canvas, 83,5 x 102,2 cm.

graphisme

poema, 1968

Uma estrela acaricia o seio de uma negra
A Star Caresses the Breast of a Negress (Painting Poem), 1938
Une Étoile caresse le sein d'une négresse (peinture-poème)
Oil on canvas, 1295 x 1943 mm

Quanto mais a legenda se afasta de seu local de costume, na base ou acima, mais ela incomoda, transforma nossa contemplação.

E se a escrita difere do habitual, se ela for ornada, por exemplo, enquadrada, sublinhada, rasurada, sobretudo se ela deixa a horizontal em que nossa convenção a colocou...

Se Miró tivesse deixado no exterior de sua tapeçaria os quatro termos caracol mulher flor estrela, certamente seríamos convidados a ler e procurar cada um deles em resposta – mesmo sem eles, teríamos encontrado não apenas uma, mas três mulheres; teríamos pensado, em contrapartida, no caracol, na flor e na estrela? Eis que rastejam e babam, desabrocham, perfumam, profetizam, cintilam, feminizam ao apelo dessas palavras, que fazem brilhar e deliciosamente deslizar essas damas -,

mas ele pintou seu título entre as figuras, com uma escrita cursiva, o que implica um certo vigor, a continuidade do traço, ao contrário do que acontece com os tipos de imprensa, faz escorregar, patinar (rangido das antigas plumas sobre as bacias geladas das folhas), inundar untuosamente, percorrer (oscilações do pincel singrando a tela, mar de óleo) a palavra de uma ponta a outra,

mas essas palavras estão unidas por um verdadeiro laço que prende em seus volteios nosso olhar e nos impede de considerar uma sem a outra: é uma pista sobre a qual deslizamos, passando indefinidamente do caracol à estrela e da mulher à flor, laço capturando os atores e levando em seu doce ciclone;

e afim de poder se libertar do movimento da esquerda à direita que parece, no intervalo de uma só linha, confinar nossa escrita, em vez de passar seu traço contínuo, como um amanuense muito preguiçoso para levantar a pluma entre dois nomes, da última letra de palavra precedente à primeira da seguinte, é o “f” de “femme” que o aproxima do “f” de “fleur”, é o último “e” de “étoile”, que o liga ao “e” inicial de “escargot” à esquerda, palavra que normalmente lemos primeiro, e no interior da qual se produz uma nova retrogradação,

não apenas em zig-zag, mas em vai e vem;

cada um dos termos informando espacialmente a região que o envolve, nós temos a tendência a buscar o que designa “escargot” ou “fleur” em suas paragens, enquanto se inscritos fora do quadro, sua influência se repartiria uniformemente sobre toda a superfície, nada nos impediria de interpretar como “escargot” a figura à direita; quanto a “étoile”, particularmente amplo, envolto por outras palavras ou por seus laços, como tem apenas três figuras, nós podemos ver que está ali menos para qualificar que para substituir uma estrela ausente (essa que teríamos procurado em vão, ou identificado por engano, se o título estivesse no exterior), acrescenta pois um quarto elemento necessário, um quarto reino.

(trecho de As Palavras na Pintura, de Michel Butor. Tradução inédita de Amir Brito Cadôr)

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