sábado, 5 de setembro de 2009

Vileneuve

Pietá
Na Pietá de Villeneuve-lès-Avignon, São João, a Virgem e Madalena são imediatamente identificados em seus papéis na cena, mesmo pelos cristãos menos instruídos, pois seus nomes estão escritos em suas auréolas; por outro lado, nós não reconhecemos o doador, e nenhum texto nos tira da ignorância. Quanto ao Cristo, ele não tem senão uma auréola de raios sem nenhuma letra. As palavras:

“Johannes Evangelista
Virgo Mater
Maria Magdalena”

não são pintadas, a bem dizer, mas gravadas sobre o fundo de ouro e difíceis de decifrar à primeira vista; não é senão lentamente, com a luminosidade, que lemos letra por letra. Elas não estão ali para permitir que identifiquemos os personagens, mas para nos obrigar a pronunciá-las respeitosamente o mais freqüentemente possível. Elas não se tornam legíveis a não ser com certa demora; elas nos obrigam a prestar atenção. Encontramo-nos diante do mesmo fenômeno ao nos depararmos com a espantosa ortografia das inscrições nas tumbas egípcias, destinadas a provocar a pronúncia efetiva do nome do morto. Conhecemos o papel das deformações ortográficas na publicidade moderna.

A disposição circular ao redor de cada cabeça participa dessa desaceleração, esse retardamento da leitura, certas letras se encontram em posição invertida, mas sobretudo a tela é de certa maneira orientada por cinco círculos dourados: as três auréolas, o nimbo de Cristo, e essa estrela como uma jóia no manto da Virgem, stella matutina.

O fundo dourado é o céu sobre o qual se inscreve eternamente os nomes dos personagens sagrados; a estrela matutina, atravessando a cobertura corporal da Virgem acima do horizonte é o anúncio da descida do céu sobre a terra, que vemos realizada no corpo do Cristo morto, de quem a cabeça irradia abaixo da linha do horizonte.

A ausência de um nome nesse nimbo se revela tão importante quanto sua presença nos outros: por sua ignorância, ele nos fará esperar a ressurreição para se desenvolver inteiro.

Irradiação dourada que nos revela os nomes dos outros como irradiação de sua cabeça: intimamente, indefinidamente, a partir de sua entrada no céu, eles pronunciam seu nome no concerto de anjos, é a essa pronúncia que associamos o deciframento.

Na auréola central “Virgo” e “Mater” se equilibram. “Mater” é legível quando estamos do lado de São João; com efeito, o Cristo disse no Gólgota: “Eis tua mãe”. “Virgo” é legível do lado de Madalena. João dá eternamente à Virgem o nome de mãe, a pecadora celebra eternamente a mãe de Deus ao dar-lhe o nome de virgem; os raios de leitura se cruzam nesse círculo.

O prenome “Maria”, que se aplica tanto à cortesã de Magdala quanto à mãe de Jesus, está inscrito do lado desta; a palavra “evangelista” olha o crucificado. Mas não esgotamos a sonoridade de uma tela. Toda a parte de ouro celeste está enquadrada por uma longa inscrição em caracteres tão pequenos que são lidos ainda mais lentamente:

“O vos omnes qui transitis per viam attendite et videte si est dolor sicut dolor meus”,
“Ó vós que passais pelo caminho, olhai e vede se há dor comparável à minha dor!”;

Tratam-se das palavras atribuídas pela liturgia católica à Virgem nos ofícios das sextas e sábados santos:

de modo crescente à esquerda, interrompe a passagem pela rota habitualmente horizontal de nossa leitura, pois aqui nosso itinerário figurado, nossa distração, com as palavras “attendite et videte” que nos detém, depois descendo pela direita para nos encontrarmos com a encarnação dessa dor, cilada piedosa.
(trecho de As Palavras na Pintura, de Michel Butor, traduzido por Amir Brito)

4 comentários:

Laura Cohen disse...

que blog sensacionaaal!!

Laura Cohen disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

muito bom

Anônimo disse...

Como vai, Amir. Não sei se se lembra de mim. Eu sou o Tom, o editor do Tom Zine. Pois é, o Tom Zine migrou definitivamente para a internet. Caso tenha curiosidade, o endereço é este: http://paredesteto.blogspot.com
Abraços!