sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Josua Reichert




Joshua Tree
 
Josua Reichert não é pintor, nem gráfico mas tipógrafo. O seu instrumento é a prensa manual. Os seus meios são caracteres de madeira e seus revessos planos e rectangulares. Trabalha com elementos prefabricados. As formas da sua arte austera sêío sobretudo letras ou quadrados, rectângulos e tiras. A isso junta‑se a côr.
A sua obra está sujeita às leis da tipografia. Está condicionada pelas possibilidades da letra e da impressão. A sua estética não ultrapassa nunca as regras da tipografia. Neste sector muito limitado Reichert desenvolve uma grande fantasia plástica. A relação específica entre a limitação voluntária e a liberdade criativa determina o caráter desta arte.
Logo um primeiro olhar sobre as suas fôlhas mostra que Reichert não é apenas um artífice, como o tipógrafo à máquina. Para êle não se trata de reproduzir o escrito para livros. Naturalmente pretende que os curtos textos poéticos, impressos por êle em grandes fôlhas soltas, sejam legíveis e encontrem uma certa divulgação. Mas em primeiro lugar esforça‑se em dar ao poema, às frases fundamentais e às parábolas uma forma ópticamente adequada e criar a correspondência tipográfica para o enredo e a essência do poético. Nos casos porém em que o tema é a pura constelação de letras, o tipograma mais livre, que se afasta do sentido da palavra, o caminho leva ao quadro formado por sinais. O processo de impressão é para Reichert uma tarefa artística. Com os caracteres de impressão cria uma obra original, um caso artístico único sempre novo. A fantasia tem por fim expresso dar valores artísticos ao elemento regular e transformá‑lo num ”artificium". Como o pintor de um manuscrito medieval, é estimulado pelo impulso de elevar a forma simples da letra ou da palavra, abstraindo da sua própria função, a figurações mais livres e procura estruturar a fôlha artisticamente, levado pela vontade de criar sinais e configurações formais. A ordem formal que se revela na sua obra pertence ao sector da arte e não ao ramo da tipografia. As obras de Reichert são acontecimentos da forma.
Os seus pontos de partida são o tipógrafo holandês, Hendrik Nicolaas Werkman (1882 ‑ 1945) e o seu professor, o gravador de madeira Hap Grieshaber. O que tem de comum com Werkman ‑ além da técnica e do material ‑ é o tom poético que se reflete nas obras de ambos. A Grieshaber liga‑o a expressão decidida e vigorosa e a côr luminosa. Reichert encontrou bastante cedo a sua própria linguagem, na qual a clareza disciplinada e a poesia flutuante formam um conjunto de expressão muito pessoal. É cada vez mais uma variante alemã muito independente da pintura internacional do “hard‑edge”.
Em 1960 começou duma maneira completamente diferente. Com 23 anos imprimiu por encomenda poemas expressionistas em fôlhas de grande formato de 1 m e mais. Nelas a linguagem ‑ pela primeira vez depois de muito tempo ‑ foi apresentada formalmente e segundo pontos de vista puramente visu­ais, exclusivamente com os meios tipográficos, com letras, a sua forma, os seus taman­hos, a sua constelação, os seus valores de côr e a sua composição. O resultado é uma presenciação óptica convincente dos poe­mas, que torna literalmente visível a força profunda do poético (catálogo no 1 ‑ 2). Na segunda encomenda que consistiu em impri­mir cinco “graneis" gigantescos com textos sobre a história da porcelana, revelam‑se ainda mais nitidamente as qualidades artís­ticas desta tipografia: a beleza especial das letras que recebem o valor de sinais, nas quais a força expressiva da madeira con­tinua viva, e a sua integração gradual no contexto formal (catálogo no 3). Cada letra é composta individualmente, estaticamente uma ao pé da outra, formando palavras, ou uma sobre a outra em côres diferentes e rit­micamente deslocadas, criando estruturas plásticas e até ás vezes cristalizações da forma. As linhas sobem e caiem em cadências pesadas e sobrepõem‑se, produzindo tipogramas cada vez mais densos e já quase ilegíveis. Aqui o texto que possui pouco valor próprio torna‑se o campo de acção de um tipógrafo que ensaia as suas possi­bilidades e as leva até ao extremo.
Pouco depois Reichert faz uma separação entre textos destinados a serem lidos e tipo­gramas puros, ou seja composições de letras com valores de sinais. A composição dos textos torna‑se calma e clara e serve exclusivamente à palavra poética. Nenhuma emoção, nenhuma acentuação do pessoal inquieta o decurso das linhas e estrofes. O ritmo íntimo da poesia determina a medida da tipografia. A relação profunda e original de Reichert com a língua, habilita‑o a tornar visível o tom e a essência do poético (catá­logo nos 10, 11, 12,15).
Nos anos de 1960 a 1963 Reichert tornou‑se senhor das regras e possibilidades da tipo­grafia artística. Nos trabalhos dêsses anos verifica‑se a disciplina progressiva formal e espiritual, como demonstra a aplicação sistemática dos elementos no “lgor” (catá­logo nº 4) e no primeiro SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS de 1962, naquela frase latina, que, escrevendo as palavras uma por baixo da outra, tanto se pode ler de cima para baixo como da esquerda para a direita (catálogo nº 5). Reichert imprimiu a composição quatro vezes uma sobre a outra, girando a fôlha sempre por 90º, tra­duzindo assim o reflexo mágico da frase numa forma artística adequada. A variação cirílica do tema (catálogo nº 8) mostra a transição do estudo sistemático para a tipo­grafia mais livre e formal. Predomina a qualidade formal, a capacidade expressiva da letra e a composição vigorosa que revelam uma construção consciente e firme e não apenas um arranjo interessante. A viva­cidade eminente desta fôlha foi atingida com poucos meios tipográficos. Neles não se encontra nada que não corresponda ao carácter da letra e da tipografia. Uma solução igualmente austera e simultaneamente livre mostra o “Joshuatree" que representa um sinal tipográfico para “árvore".
Em 1963/64 Reichert reuniu o conjunto das suas experiências no “codex typographi­cus", uma série de 28 folhas todas expostas aqui. Com as suas iniciais, letras versais e tipogramas, as suas fôlhas com parábolas e poemas, este “codex” parece uma cole­ção de amostras definitiva da primeira fase desta arte. Contem soluções de grande mestria. Como exemplo veja‑se a oitava fôlha da série, representando a figura en­genhosamente cruzada do “Janus" bicéfalo (catálogo no 10). Revela o domínio soberano dos meios agora atingido e o grande dom de fantasia para inventar a forma tipogràfi­camente adequada para o sentido da pa­lavra escolhida e mostra também o aumento de disciplina mental e de deliberação que preserva o tom poético e sensível, presente em toda a obra de Reichert, de fraquezas e excessos.
Reichert criou também uma série de carta­zes, especialmente para as suas próprias exposições. São cartazes relativamente pe­quenos, destinados a serem vistos de perto, portanto mais adequados para recintos fechados do que para chamar à atenção nas ruas. Nêles o tipograma puro e o texto que aqui só tem função informativa produ­zem um efeito global muito marcado, como nunca se encontra nas suas outras obras. Correspondem perfeitamente à idéia do cartaz. Mas são ao mesmo tempo figuras poéticas e artísticas que pertencem aos trabalhos mais convincentes de Reichert. São a harmonia perfeita, o compromisso mútuo e imaculado entre a forma e o texto, a composição brilhante e sem função e a beleza formal, que distinguem estes cartazes (catálogo no 14, 16, 18).
A obra principal de 1966 é o “Álbum de Ini­ciais Russas”, uma série de 24 fôlhas, basea­das no alfabeto russo (catálogo no 17). Dis­tinguem‑se das obras anteriores por uma disciplina ainda maior e pela desistência quase completa de empregar letras. São impressas quase exclusivamente com os re­vessos planos e rectangulares das letras de madeira. Composições elementares resultam de traves, rectângulos e quadrados colo­ridos. A maior disciplina formal vai acom­panhada de um trato mais livre do tema. Os caracteres cirílicos formam apenas o esqueleto da figura artística, dêles deduzida, à qual comunicam simultaneamente algo de sacral e fantástico, vivo nas letras orientais. Da ordem firme formal irradia uma expres­são viva, que se baseia exclusivamente na própria invenção. Com as suas formas cla­ras e vivamente coloridas, encontram‑se estas composições como exemplos maduros e de grande mestria no meio de uma das correntes mais actuais da arte contemporâ­nea. Mesmo assim fica completamente con­servado o elemento pessoal ao qual o pró­prio Reichert deu o título mais adequado: poesia tipográfica.
Herbert Pée, catálogo de Josua Reichert na Bienal de São Paulo, 1967
 

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