Joshua Tree
Josua Reichert não é pintor, nem
gráfico mas tipógrafo. O seu instrumento é a prensa manual. Os seus meios são
caracteres de madeira e seus revessos planos e rectangulares. Trabalha com
elementos prefabricados. As formas da sua arte austera sêío sobretudo letras ou
quadrados, rectângulos e tiras. A isso junta‑se a côr.
A sua obra está sujeita às leis da
tipografia. Está condicionada pelas possibilidades da letra e da impressão. A
sua estética não ultrapassa nunca as regras da tipografia. Neste sector muito
limitado Reichert desenvolve uma grande fantasia plástica. A relação específica
entre a limitação voluntária e a liberdade criativa determina o caráter desta
arte.
Logo um primeiro olhar sobre as suas
fôlhas mostra que Reichert não é apenas um artífice, como o tipógrafo à
máquina. Para êle não se trata de reproduzir o escrito para livros.
Naturalmente pretende que os curtos textos poéticos, impressos por êle em
grandes fôlhas soltas, sejam legíveis e encontrem uma certa divulgação. Mas em
primeiro lugar esforça‑se em dar ao poema, às frases fundamentais e às
parábolas uma forma ópticamente adequada e criar a correspondência tipográfica
para o enredo e a essência do poético. Nos casos porém em que o tema é a pura
constelação de letras, o tipograma mais livre, que se afasta do sentido da
palavra, o caminho leva ao quadro formado por sinais. O processo de impressão é
para Reichert uma tarefa artística. Com os caracteres de impressão cria uma
obra original, um caso artístico único sempre novo. A fantasia tem por fim
expresso dar valores artísticos ao elemento regular e transformá‑lo num ”artificium".
Como o pintor de um manuscrito medieval, é estimulado pelo impulso de elevar a
forma simples da letra ou da palavra, abstraindo da sua própria função, a figurações
mais livres e procura estruturar a fôlha artisticamente, levado pela vontade de
criar sinais e configurações formais. A ordem formal que se revela na sua obra
pertence ao sector da arte e não ao ramo da tipografia. As obras de Reichert
são acontecimentos da forma.
Os seus pontos de partida são o
tipógrafo holandês, Hendrik Nicolaas Werkman (1882 ‑ 1945) e o seu professor, o
gravador de madeira Hap Grieshaber. O que tem de comum com Werkman ‑ além da
técnica e do material ‑ é o tom poético que se reflete nas obras de ambos. A
Grieshaber liga‑o a expressão decidida e vigorosa e a côr luminosa. Reichert
encontrou bastante cedo a sua própria linguagem, na qual a clareza disciplinada
e a poesia flutuante formam um conjunto de expressão muito pessoal. É cada vez
mais uma variante alemã muito independente da pintura internacional do “hard‑edge”.
Em 1960 começou duma maneira
completamente diferente. Com 23 anos imprimiu por encomenda poemas
expressionistas em fôlhas de grande formato de 1 m e mais. Nelas a linguagem ‑
pela primeira vez depois de muito tempo ‑ foi apresentada formalmente e segundo
pontos de vista puramente visuais, exclusivamente com os meios tipográficos,
com letras, a sua forma, os seus tamanhos, a sua constelação, os seus valores
de côr e a sua composição. O resultado é uma presenciação óptica convincente
dos poemas, que torna literalmente visível a força profunda do poético
(catálogo no 1 ‑ 2). Na segunda encomenda que consistiu em imprimir cinco “graneis"
gigantescos com textos sobre a história da porcelana, revelam‑se ainda mais
nitidamente as qualidades artísticas desta tipografia: a beleza especial das
letras que recebem o valor de sinais, nas quais a força expressiva da madeira
continua viva, e a sua integração gradual no contexto formal (catálogo no 3).
Cada letra é composta individualmente, estaticamente uma ao pé da outra,
formando palavras, ou uma sobre a outra em côres diferentes e ritmicamente
deslocadas, criando estruturas plásticas e até ás vezes cristalizações da
forma. As linhas sobem e caiem em cadências pesadas e sobrepõem‑se, produzindo
tipogramas cada vez mais densos e já quase ilegíveis. Aqui o texto que possui
pouco valor próprio torna‑se o campo de acção de um tipógrafo que ensaia as
suas possibilidades e as leva até ao extremo.
Pouco depois Reichert faz uma
separação entre textos destinados a serem lidos e tipogramas puros, ou seja
composições de letras com valores de sinais. A composição dos textos torna‑se
calma e clara e serve exclusivamente à palavra poética. Nenhuma emoção, nenhuma
acentuação do pessoal inquieta o decurso das linhas e estrofes. O ritmo íntimo
da poesia determina a medida da tipografia. A relação profunda e original de
Reichert com a língua, habilita‑o a tornar visível o tom e a essência do poético
(catálogo nos 10, 11, 12,15).
Nos anos de 1960 a 1963 Reichert
tornou‑se senhor das regras e possibilidades da tipografia artística. Nos
trabalhos dêsses anos verifica‑se a disciplina progressiva formal e espiritual,
como demonstra a aplicação sistemática dos elementos no “lgor” (catálogo nº 4)
e no primeiro SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS de 1962, naquela frase latina, que,
escrevendo as palavras uma por baixo da outra, tanto se pode ler de cima para
baixo como da esquerda para a direita (catálogo nº 5). Reichert imprimiu a
composição quatro vezes uma sobre a outra, girando a fôlha sempre por 90º, traduzindo
assim o reflexo mágico da frase numa forma artística adequada. A variação
cirílica do tema (catálogo nº 8) mostra a transição do estudo sistemático para
a tipografia mais livre e formal. Predomina a qualidade formal, a capacidade
expressiva da letra e a composição vigorosa que revelam uma construção
consciente e firme e não apenas um arranjo interessante. A vivacidade eminente
desta fôlha foi atingida com poucos meios tipográficos. Neles não se encontra
nada que não corresponda ao carácter da letra e da tipografia. Uma solução
igualmente austera e simultaneamente livre mostra o “Joshuatree" que
representa um sinal tipográfico para “árvore".
Em 1963/64 Reichert reuniu o conjunto
das suas experiências no “codex typographicus", uma série de 28 folhas
todas expostas aqui. Com as suas iniciais, letras versais e tipogramas, as suas
fôlhas com parábolas e poemas, este “codex” parece uma coleção de amostras
definitiva da primeira fase desta arte. Contem soluções de grande mestria. Como
exemplo veja‑se a oitava fôlha da série, representando a figura engenhosamente
cruzada do “Janus" bicéfalo (catálogo no 10). Revela o domínio soberano
dos meios agora atingido e o grande dom de fantasia para inventar a forma
tipogràficamente adequada para o sentido da palavra escolhida e mostra também
o aumento de disciplina mental e de deliberação que preserva o tom poético e
sensível, presente em toda a obra de Reichert, de fraquezas e excessos.
Reichert criou também uma série de
cartazes, especialmente para as suas próprias exposições. São cartazes
relativamente pequenos, destinados a serem vistos de perto, portanto mais
adequados para recintos fechados do que para chamar à atenção nas ruas. Nêles o
tipograma puro e o texto que aqui só tem função informativa produzem um efeito
global muito marcado, como nunca se encontra nas suas outras obras.
Correspondem perfeitamente à idéia do cartaz. Mas são ao mesmo tempo figuras poéticas
e artísticas que pertencem aos trabalhos mais convincentes de Reichert. São a
harmonia perfeita, o compromisso mútuo e imaculado entre a forma e o texto, a
composição brilhante e sem função e a beleza formal, que distinguem estes
cartazes (catálogo no 14, 16, 18).
A obra principal de 1966 é o “Álbum de
Iniciais Russas”, uma série de 24 fôlhas, baseadas no alfabeto russo
(catálogo no 17). Distinguem‑se das obras anteriores por uma disciplina ainda
maior e pela desistência quase completa de empregar letras. São impressas quase
exclusivamente com os revessos planos e rectangulares das letras de madeira.
Composições elementares resultam de traves, rectângulos e quadrados coloridos.
A maior disciplina formal vai acompanhada de um trato mais livre do tema. Os
caracteres cirílicos formam apenas o esqueleto da figura artística, dêles
deduzida, à qual comunicam simultaneamente algo de sacral e fantástico, vivo
nas letras orientais. Da ordem firme formal irradia uma expressão viva, que se
baseia exclusivamente na própria invenção. Com as suas formas claras e
vivamente coloridas, encontram‑se estas composições como exemplos maduros e de
grande mestria no meio de uma das correntes mais actuais da arte contemporânea.
Mesmo assim fica completamente conservado o elemento pessoal ao qual o próprio
Reichert deu o título mais adequado: poesia tipográfica.
Herbert Pée, catálogo de Josua Reichert na Bienal de São Paulo, 1967
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