A dedicatória em cartas antigas, a assinatura, a data segundo a era revolucionária, em primeiro plano sobre a caixa de madeira que serve de velador a Marat em sua banheira, sua transformação em estela, toda a tela em monumento.
O assassinado tem nas mãos a carta de Charlotte Corday:
“13 de julho de 1793 – Marie Anne Charlotte Corday ao cidadão Marat – é suficiente que eu seja bem infeliz por ter direito a sua simpatia” - em oposição entre as escritas, as datas.
Dando a impressão de sair da tela, pois a tábua estela parece se confundir com seu plano, acenando à nossa apreciação, o bilhete de escrita convencional bem mais próximo de sua escala, acompanhado de uma rubrica.
Entre as duas dedicatórias que se conjugam no nome de Marat, inscrito tão diferentemente, todo um diálogo: a carta traidora de Charlotte Corday (o enorme aumento que permite uma leitura perfeita é como um grito de indignação: não é mais possível que um estratagema tão baixo continue ignorado)
Marat responde com generosidade; é o assassinado quem agradece, o quadro tira a conclusão.
Marat assassinado é apreendido ao mesmo tempo no ato da leitura e na escritura, ações, funções que são mais fáceis de traduzir pictoricamente que a elocução ou a audição. O leitor pintado, por exemplo os pastores que decifram sobre um túmulo o “et in Arcadia ego” de Poussin, são representados no interior da obra, como se fossem admiradores de uma cena ou paisagem. Mesmo nos dedos que seguem as letras uma a uma, retraçando-as, colocamo-nos em relação ao traçado bem melhor que por um espectador remoto, ou um amante de pintura, examinando algum detalhe à lupa como no Enseigne de Gersaint. O escritor pintado, por exemplo, tal evangelista, ou o secretário do rei Théonat na Lenda de Santa Úrsula, de Carpaccio, figura o pintor, diferentemente com certeza do pintor pintado em seu ateliê, o qual olha sua modelo que vai figurar na tela; é então que o pintor olha sua tela como um primeiro espectador, para afixar a inscrição, em particular o título e a assinatura.
As relações entre sujeito (real ou não), pintor e espectador real se refletem no tema do modelo, do pintor e do espectador, às vezes no mesmo quadro, se reflete em um segundo nível do texto, do escritor e do leitor. No escritor, o pintor já se pinta como espectador, no leitor ele já pinta o espectador como pintor.
David quer que o espectador se identifique com o Marat leitor: não teríamos sido enganados como ele por tal mentira? Quer que nos identifiquemos à Marat escritor, que nós o consideremos tão generoso quanto ele, sob a ameaça de um mesmo golpe de faca. Ele continua.
Quanto a Charlotte Corday, a pintura a eliminou. Ela estava ali entre a leitura e a conclusão da escrita, mas o fato de tornar sua vitima herói por tal monumento pictórico a fez desaparecer para sempre. Mais que um rosto, o assassinato é assinado apenas por algumas linhas falsas.
David faz-nos detectar esta mentira, caso particular de uma mensagem onipresente, ele sabe que nos sentimos na sombra da faca prestes a nos golpear, e oferecendo-se para nos proteger, quer levantar para nós esta ameaça: a faca escondida sob as linhas é desmascarada, encarcerada na pintura; pela sua virtude doravante nenhuma faca deveria poder se manchar de tal sangue.
Todo o amor da verdade, do combate contra a miséria, da liberação verdadeira na atividade de Marat (o sangue que ele fez correr lavado por David em seu próprio sangue, nessa banheira purificadora) deve se consolidar pelo que começa nessa obra. Jamais um ato tão autenticamente revolucionário.
(trecho de
As Palavras na Pintura, de Michel Butor, traduzido por Amir Brito Cadôr)