No outono de 1966, a diretora da galeria da School of Visual Arts me convidou ‑ na época eu era um jovem instrutor de história da arte na escola ‑ para organizar uma exposição "natalina" de desenhos de artistas contemporâneos. Minha idéia original era realizar uma mostra em torno do tema " desenhos de trabalho ". Ao contrário do esboço, que é feito tendo em vista uma forma visual final, o desenho de trabalho é o lugar da especulação privada, um instantâneo da mente em atuação. Não é feito para ser exposto, e muitas veze é indecifrável; ele existe num nível inferior ao das exigências mínimas que são feitas a uma "obra de arte".
Entrei em contato com artistas cujas obras me agradavam; alguns eu conhecia pessoalmente, outros não. Pedi a cada um que escolhesse um grupo de quatro ou cinco desenhos que se enquadrassem no que expus acima. Todos os convidados aceitaram participar.
Depois de ter reunido o material, que incluía desde rabiscos aleatórios em pedaços de papel rasgado até a conta apresentada a Donald Judd pela fabricação de sua escultura, entreguei tudo à diretora da galeria. Sua reação não foi positiva. "Eu esperava que você me trouxesse desenhos emoldurados, Não temos dinheiro para emoldurar essas coisas. Aliás... que diabo são essas coisas?" Como os desenhos de trabalho não têm qualquer pretensão de ser objetos autográficos, sugeri que fossem fotografados, e que as fotos fossem presas à parede sem qualquer moldura. "Também não temos dinheiro para tirar fotos", foi a resposta dela.
A fotografia distancia os objetos, transformando‑os em representações, algo que na época eu estava investigando em obras como 36 photographs and 12 diagrams. Foi esta linha de raciocínio que me deu a idéia de apresentar os desenhos de trabalho como reproduções. A forma mais simples e mais barata de reprodução era a cópia xerográfica, uma tecnologia relativamente nova em 1966. A escola havia recentemente instalado uma copiadora, onde pude xerocar todos os desenhos. A máquina reduzia ou ampliava cada desenho de modo que cada um deles ocupasse uma folha de 21,59 x 27,94cm, transformando‑os em páginas. Como os desenhos haviam sido reduzidos ao nível de informação, não fazia mais sentido prendê‑los na parede. O processo já os transformara em um livro. Marshall McLuhan, na época um autor muito lido e discutido, escrevera que "a copiadora xerográfica transforma cada homem num editor". Então me perguntei: por que não "publicar" os desenhos ou seja, fazer mais de uma cópia? Resolvi produzir quatro cópias, porque o quatro, o primeiro número não primo, implica a natureza infinita do número e, por extensão, a natureza infinita da reprodução.
Mas não havia desenhos suficientes para encher um livro. Decidi que 100 páginas seria o mínimo necessário para manter o interesse do espectador durante um período de tempo mais prolongado. Como naqueles desenhos não havia muitos indícios de que seus autores eram artistas, convidei outros trabalhadores intelectuais ‑ um compositor, um arquiteto, um biólogo, um matemático, um coreógrafo e um engenheiro ‑ a apresentar seus desenhos de trabalho. Como ainda assim não consegui fazer 100 páginas, peguei um número da revista Scientific American e xeroquei algumas páginas de diagramas, tabelas e listas, uma referência jocosa à crítica que se fazia do minimalismo como "arte tecnológica". Para referenciar a mostra a um lugar específico, xeroquei uma planta baixa com as dimensões da galeria da S.V.A. para servir de frontispício. E, num ato final de auto‑referencialidade, reproduzi também o diagrama de instalação da própria copiadora Xerox. Comprei quatro fichários pretos comuns, de três furos, e neles coloquei os desenhos em ordem alfabética, de A (André) a X (Xerox). A última decisão foi a de expor cada livro num pedestal separado, quatro pseudo‑esculturas minimalistas lado a lado, numa galeria vazia.
Working Drawings And Other Visible Things On Paper Not Necessarily Meant To Be Viewed As Art , 1966
Minha intenção era transformar a experiência do espectador numa experiência de leitor. Mas os pedestais, com a altura de mesas (79cm), propositadamente tornavam muito desconfortável a experiência de ler os livros em pé. Quando o leitor terminava um livro e passava para o segundo, ele se dava conta de que eles eram idênticos, o que suscitava uma escolha: parar ou continuar? Este momento de hesitação levantava também uma questão mais intrigante: o significado estava localizado no livro individual ou na própria exposição?
Antes da abertura da exposição devolvi os desenhos originais aos artistas e expliquei o que estava fazendo. Ninguém fez qualquer objeção, se bem que Judd manifestou um certo ceticismo quando me referi à exposição como "minha obra". Mas a meu ver esta designação era uma conseqüência inevitável das decisões que eu havia tomado no decorrer do processo. A uma certa altura, eu me dera conta de que o que estava em jogo em Working Drawings não era apenas um novo tipo de objeto (o livro) e um novo conceito de obra (a exposição), e sim uma definição de autoria radicalmente nova.
(Publicado no catálogo da exposição no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, 1997)
ps. imagens do livro podem ser obtidas aqui e aqui.
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